No último dia 25/02/2024, Bolsonaro promoveu um ato político na Avenida Paulista. Coisa curiosa: ele, que ficou em silêncio no depoimento que deveria dar à Polícia Federal (PF), alegou que queria se defender das acusações de golpe que lhe são imputadas em ato público. Ele é sempre corajoso entre os dele. E só entre os dele.
A falar a verdade, seu objetivo era mais político que jurídico. O que ele queria mesmo era manter sua base mobilizada e dar uma inequívoca demonstração de força política a seus adversários e à justiça, como a querer intimidá-los, quiçá ameaçá-los.
Embora não tenham conseguido juntar um milhão de pessoas, como alguns alegaram – uns chegaram mesmo a falar de trezentos milhões -, a demonstração de força foi dada. Inegavelmente. Afinal, juntar quase duzentas mil pessoas em evento político, fora do período eleitoral, é um feito e tanto.
Contudo, cabe dizer que a verdadeira razão para querer demonstrar força é, na verdade, a incontida necessidade de esconder uma fraqueza. Bolsonaro está encurralado. Praticamente sem saída. Tudo indica que deve ser preso pela tentativa de golpe de Estado.
Com o perdão do trocadilho, naquele evento, Bolsonaro acusou o golpe. Sentiu o cerco se fechando à sua volta. Daí ele, que é tão dado à beligerância, agora passar a falar candidamente de “pacificação”. Não há outra razão para, depois de tanto negar a tentativa de golpe e terceirizar culpas a torto e a direito, ele abraçar desesperadamente a proposta de anistia.
No dia do evento, pediu ao Parlamento que encampasse a proposta de anistia para aqueles “pobres coitados” (não eram “petistas infiltrados”?) que foram presos pelos atos de 08 de janeiro. Entretanto, ao mais atentos, claro estava que o pedido de anistia era feito principalmente para ele mesmo e para seu círculo mais próximo. Ele advogava em causa própria.
Em entrevista recente, deixando patente quão temeroso está de ser preso, disse que o Executivo é que deveria fazer a proposição da anistia. Essa nova orientação de Bolsonaro é claro sinal de que ele e sua defesa entenderam que será impossível fugir à responsabilização pela tentativa de golpe. Diga-se, aliás, que todo aquele que pede anistia reconhece, antes de tudo, que tem culpa e que cometeu crime.
De minha parte, creio ser pouco provável que seu grupo consiga levar a proposta de anistia a bom termo. Por outro lado, é igualmente improvável que o Judiciário e o Executivo queiram vir em seu socorro. E, mesmo que o fizessem, não estariam nem pacificando o país, nem protegendo a democracia. Estariam, em verdade, fazendo o contrário disso.
Com efeito, provavelmente, estamos em face da tentativa de golpe mais patética e, também, a mais bem documentada da nossa história. Há documentos: uma minuta em que foi sugerida a prisão de Rodrigo Pacheco e dos ministros Gilmar Mendes e Alexander de Moraes – bem como uma intervenção no TSE – e outra em que Bolsonaro faria um pronunciamento à nação, reconhecendo o golpe. Ele mesmo, talvez num ato falho, reconheceu a existência da minuta e que sabia disso, o que lhe pode render complicações judiciais. Há, ainda, mensagens de celular. Há áudios. Há vídeos. Tudo à farta. Em resumo, o que não faltam são evidências e provas.
E olhem que as investigações ainda estão em andamento. Sabe-se lá o que a PF já descobriu mas ainda não veio a público. Sabe-se lá o que ela ainda está por descobrir. Ora, quem quis golpear e condenar nosso sistema eleitoral e nossa democracia por nada mais que suspeitas infundadas não pode, com tantas provas contra si, alegar que está sendo perseguido injustamente.
Os rastros que deixou não dão margem a dúvida: ele tentou um golpe. Se não foi exitoso em sua empreitada – o que não lhe tira um grama de culpa -, não foi por não querer, por não ter tentado. Foi porque ou lhe faltou inteligência ou força. Ou faltaram ambas as coisas.
Do ponto de vista democrático, anistiar essas pessoas seria temerário, algo potencialmente suicida. Representativo dessa nova direita que se espalha pelo mundo, direita extremada, o bolsonarismo é de índole essencialmente antidemocrática e golpista. Registre-se que entre os que compareceram ao ato na Avenida Paulista, 88% creem que Bolsonaro venceu Lula nas últimas eleições[1]. Ou seja, eles continuam acreditando que as urnas foram fraudadas, mesmo sem nenhuma prova ou evidência que lhes dê sustentação.
Toda forma de negacionismo é estúpida. Sabemos. Mas, em contraste com outras, essa aí tem um potencial altamente deletério e imediato. A história recente e ainda em curso já o provou sobejamente. Por exemplo, um terraplanista não há de querer usar a força para impor sua crença. E, caso queira, dificilmente terá condições de fazê-lo.
Os bolsonaristas são diferentes. Eles são fanáticos, têm força e estão organizados. Basta que seu líder dê uma explicação qualquer, para o que for, como for, e eles acreditam. Basta que seu líder dê as ordens, e lá estarão em marcha.
O fato é que seu horizonte de visibilidade determina vastos horizontes de invisibilidade. Por mais real que seja, o que não veem – ou não querem – não existe. Já o que veem – ou querem ver -, por irreal que seja, existe. A crença que fundamenta a adesão ao campo político a que pertencem é à prova de provas.
Por isso mesmo, não devemos esquecer que essa gente promoveu um quebra-quebra em Brasília – a capital do país! – por duas vezes. Uma no dia da diplomação do Lula e outra no 08 de janeiro. Não devemos esquecer que essa gente planejou um atentado terrorista a bomba. Do mesmo modo, não podemos esquecer que ficaram por meses nas frentes dos quartéis clamando por golpe militar, como se estivessem fazendo uma reivindicação cidadã da mais alta legitimidade.
Enfim, para ser mais claro, não podemos esquecer que essa gente é altamente perigosa. Parecem dispostos a tudo. Pelos vídeos que circularam desse ato último, entre eles ainda há quem fale em guerra civil, caso Bolsonaro seja preso.
Eles só aceitam a porta de entrada da democracia, mas não sua porta de saída. Só aceitam as eleições que ganham; não as que perdem. Até hoje Bolsonaro não reconheceu sua derrota, o que contribui enormemente para manter essa crença perniciosa viva, se reproduzindo e encorajando gente a atentar contra a ordem democrática.
Puni-los por seus crimes é, neste sentido, não apenas uma questão de justiça. É, também, uma forma de proteger a democracia contra quem já demonstrou ser pouco ou nada afeito a ela. A democracia não é um sistema de permissividade, como pretendem que seja. Não pode se escudar nela quem lhe colocou a faca no pescoço.
Está na hora de estabelecer limites, de fazer um risco no chão e dizer: Daqui ninguém passa! Do maior ao menor, os golpistas devem ser punidos. Todos. Cada um com uma pena na justa proporção de sua responsabilidade. Nem mais nem menos. Anistia a nem um, de modo nenhum.
Ou condenados são eles ou condenada é a democracia. Como dissemos acima, essa gente tem índole antidemocrática e golpista. Se saírem ilesos agora, vão ficar com a cômoda e encorajadora certeza da impunidade. E, uma vez fortalecidos, vão voltar à carga golpista que lhes é peculiar. Então, talvez, seja tarde demais para reagir.
[1] Pesquisa mostra perfil de manifestantes na Paulista: 88% acham que Bolsonaro venceu Lula – Congresso em Foco (uol.com.br)
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Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).