Dentro do trabalho de pesquisa de um historiador as fontes históricas constituem um papel fundamental no que diz respeito ao que se investiga, é preciso fundamentar o estudo dentro dessas fontes para que haja embasamento cientifico dentro do que o historiador tenta passar em sua pesquisa.
Entretanto, ao longo dos anos o que se entende como fonte histórica passou por uma abrangência maior, inicialmente existia o conceito de que as fontes históricas eram apenas documentos oficiais escritos e que podiam ser rastreados até grandes eventos ou pessoas de relevância dentro do que era considerado o relato histórico, isso em um ponto de vista positivista.
Com o movimento da Escola dos Annales, em especifico a terceira geração, uma nova gama de documentos passou a ser considerados como fontes históricas, fossem fotografias, jornais, relatos de pessoas de outras camadas sociais que não eram consideradas relevantes para a escrita histórica, pensamentos, biografias, até mesmo, por exemplo, a vida de um moleiro perseguido pela inquisição na Europa do século XVI.
Dentro disso, novas formas de escrever história surgiram e passaram a abranger muito mais que só a vida de grandes figuras, essas fontes diversas abriram portas pra novas pesquisas, novos modos de ver a História enquanto ciência, um modo de pensar crítico e um método cientifico passaram a ser parte da pesquisa histórica que antes era vista apenas como um meio de contar grandes acontecimentos e a vida de pessoas importantes.
É nesse contexto que essa análise surgiu, de mostrar como um material que pode ser considerado comum, as histórias em quadrinhos, popularmente chamadas de HQ, podem também conter teor histórico em seus diálogos, ilustrações e personagens, que enquanto figuras de representação de temporalidades, subjetividades e discursos também servem em sua totalidade como fonte de estudo historiográfico.

A ideia dessas produções enquanto fonte histórica surge do conceito de que toda produção humana parte de alguma subjetividade, subjetividade é quando uma fonte, nesse caso as HQs, é atravessada pelo ponto de vista e vivências de quem as escreve, as histórias em quadrinho são por sua vez compostas por mensagens que buscam dizer algo, algo que está atrelado ao tempo em que foram escritas.
Uma HQ que foi escrita em contexto de guerra, muitas vezes, mesmo que indiretamente pode trazer relatos sobre esse acontecimento que marca a época de sua criação, seja no local de sua ambientação, seja através de um personagem ou grupo de personagens.
Um exemplo interessante é o grupo de heróis X-Men, cuja primeira edição foi publicada em 1963, no auge dos movimentos civis pela luta de direitos da comunidade negra nos Estados Unidos, um movimento marcado por duas figuras de grande destaque, Martin Luther King e Malcolm X, líderes importantes que estavam a frente dessa reivindicação de direitos e que supostamente teriam servido como inspiração para Charles Xavier e Magneto.
O grupo em si surgiu como uma metáfora de opressão e segregação contra um grupo de pessoas que eram perseguidas apenas por serem consideradas diferente e consequentemente “perigosas”, esse é um fenômeno comum dentro das interações humanas, quando um grupo dominante busca justificar o extermínio de outro grupo que é considerado ameaçador a primeira tática empregada é a de desumanizar o alvo de seu preconceito.
Isso é explorado de forma constante dentro dos títulos desse grupo de heróis, mesclado a uma narrativa fictícia, mas que em seus símbolos e representações trazem mensagens claras, a metáfora mutante que surgiu como um paralelo ao preconceito na década de 60 sofrido por pessoas negras com o tempo evoluiu e passou a expressar de forma mais clara o preconceito contra outros grupos socialmente marginalizados.

E é assim que um historiador consegue extrair História das páginas de uma HQ, estudando seus símbolos e representações, para Stuart Hall em seu livro de 2016 Cultura e Representação¹, representação é utilizar a linguagem para, de forma inteligível, expressar algo sobre o mundo ou representá-lo para outras pessoas, e são essas representações que são muitas vezes analisadas dentro de uma história em quadrinho, elas são muitas vezes a forma como um autor tenta transmitir uma mensagem dentro das páginas de sua HQ.
Só que como citado anteriormente as formas de se dizer algo em uma HQ vão além das palavras, suas ilustrações também buscam dizer algo, em Narrativas Gráficas de 1996 Will Eisner² dialoga em como as ilustrações são umas das principais formas pela qual uma história em quadrinho expressa algo, Eisner explica que assim como nos filmes, nos quadrinhos os símbolos não apenas narram, mas também ampliam a reação emocional do leitor.

A HQ se torna então um conjunto de sentidos cuja a finalidade é expressar algo, essas narrativas não estão isoladas da realidade, por mais irreais que pareçam, o que é dito entre suas páginas é em sua grande maioria fruto de uma vivência que atravessa a vida daqueles que participaram de sua criação, e são essas vivências impressas nessas histórias que podem servir como fonte de estudo histórico, as narrativas são as mais diversas, experiências referentes ao preconceito (racismo, intolerância religiosa, homotransfobia), grandes acontecimentos que marcaram a história da humanidade (guerras, epidemias, grandes descobertas), grupos sociais específicos (negros, gays, pessoas transgênero, pessoas com deficiência), esses eventos podem servir como inspiração direta ou indireta para essas narrativas e por sua vez trazem peso histórico dentro do que elas dizem.
O que o pesquisador precisa ter em mente é justamente essas nuances entre realidade e ficção, que parte dessas narrativas surgem como figura de linguagem para expressar algo e como analisar elas, usando pensamento crítico, para extrair contexto histórico, é nesse viés que se faz necessário o estudo dessas “novas” fontes que podem surgir ao longo do caminho do pesquisador e que são valiosas por si só em sua diversidade enquanto relatos das sociedades que refletem e dos sujeitos que vivem nesses meios.
Entender que o estudo historiográfico vai além de fontes que podem ser consideradas mais valiosas ou mais válidas é o que diversifica o trabalho de pesquisa e abre caminhos para um estudo multidisciplinar e atento a novos setores das narrativas humanas.
[1] EISNER, Will. Narrativas Gráficas de Will Eisner. tradução Leandro Luigi Del Manto, São Paulo, Devir, 2005.
[2] HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio Apicuri. 2016.
[3] Barreto, André: Você sabia? a HQ “Deus ama, o homem mata” já foi censurada no Brasil, Universo X-Men, 29 de junho de 2021. Disponível em: https://universoxmen.com.br/2021/06/voce-sabia-hq-deus-ama-o-homem-mata-ja-foi-censurada-no-brasil/. Acesso em 7 jul. 2025.
[4] #TBT da Marvel: icônica edição de Capitão América #1, Disney, 2 de março de 2023. Disponível em: https://www.disney.com.br/novidades/tbt-da-marvel-a-iconica-edicao-de-capitao-america-1. Acesso em 7 jul. 2025

Cairo Tavares da Conceição – Bacharelando em História pela Universidade Federal do Acre (Ufac). Leitor de histórias em quadrinhos e fã de carteirinha dos X-Men.




