Muitos leitores devem ter ouvido falar do dilúvio pela primeira vez através da história de Noé e sua arca. Provavelmente, muitos acreditam que essa é a única história de uma grande inundação que atingiu toda a Terra. Mas não é. Existem vários mitos, em diferentes civilizações e épocas, que falam de uma grande inundação e de um sábio salvador protegido por uma divindade.
Se eu perguntasse a vocês, leitores, qual desses mitos é o mais antigo, muitos responderiam que é o narrado na Bíblia. Mas a resposta estaria errada: a história mais antiga sobre um dilúvio foi “escrita” na Mesopotâmia e se encontra na tábua XI da Epopeia de Gilgamesh, onde o Atrahasis, supersábio, narra o dilúvio como punição dos deuses mesopotâmicos. Além desses dois, também podem ser encontradas histórias semelhantes na China antiga, na Índia e nos mitos dos povos indígenas brasileiros.
Apesar dessa diversidade de narrativas, vamos nos ater às duas que mais se assemelham: o mito bíblico e o mesopotâmico. A história do dilúvio bíblico se encontra no livro de Gênesis e gira em torno de Noé e sua família. Contando de forma direta, a humanidade se multiplicou e, com isso, os pecados se intensificaram. Deus se desagradou com seus filhos e resolveu abrir as portas do Céu para destruir todos em uma grande inundação.
Mesmo com a ira divina, existia um homem bom entre seus filhos, e Deus resolveu salvá-lo. Em sonho, Deus falou com Noé e contou que destruiria a humanidade mandando 40 dias e 40 noites de chuvas intensas, mas que Noé e sua família seriam poupados. Então, o Senhor deu instruções para a construção de uma grande arca, onde Noé deveria abrigar sua família e um casal de cada espécie de animais da criação.
¹² E viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra.
¹³ Então disse Deus a Noé: O fim de toda a carne é vindo perante a minha face; porque a terra está cheia de violência; e eis que os desfarei com a terra.
¹⁴ Faze para ti uma arca da madeira de gofer; farás compartimentos na arca e a betumarás por dentro e por fora com betume.
¹⁵ E desta maneira a farás: De trezentos côvados o comprimento da arca, e de cinquenta côvados a sua largura, e de trinta côvados a sua altura.
¹⁶ Farás na arca uma janela, e de um côvado a acabarás em cima; e a porta da arca porás ao seu lado; far-lhe-ás andares, baixo, segundo e terceiro.
¹⁷ Porque eis que eu trago um dilúvio de águas sobre a terra, para desfazer toda a carne em que há espírito de vida debaixo dos céus; tudo o que há na terra expirará.
¹⁸ Mas contigo estabelecerei a minha aliança; e entrarás na arca, tu e os teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos contigo.
¹⁹ E de tudo o que vive, de toda a carne, dois de cada espécie, farás entrar na arca, para os conservar vivos contigo; macho e fêmea serão.
²⁰ Das aves conforme a sua espécie, e dos animais conforme a sua espécie, de todo o réptil da terra conforme a sua espécie, dois de cada espécie virão a ti, para os conservar em vida.
Gênesis 6:12-20
Imagem 1: Construção da Arca

Fonte: Ilustração das Crônicas de Nuremberg
A cronologia bíblica é extremamente complicada, pois os livros compilados narram histórias que fornecem informações de datas nem sempre precisas. No entanto, em alguns casos, os historiadores conseguem estipular datas com base em fatos históricos documentados. Na cronologia histórica, os escritos da narrativa de Noé datam entre os séculos X e V a.C., período correspondente ao tempo em que os primeiros cinco livros da Bíblia estavam sendo compilados. O fato de terem sido narrados e escritos não garante a veracidade dos acontecimentos do dilúvio bíblico, mas esse debate é complexo e deixaremos para outro momento.
Agora, vamos voltar alguns séculos para falar um pouco do mito diluviano da Mesopotâmia. O épico de Atrahasis data de aproximadamente o século XVIII a.C., mas possivelmente existiram versões mais antigas do final do terceiro milênio a.C., pois devemos lembrar que esses mitos eram transmitidos de forma oral entre as pessoas e somente depois do advento da escrita essas histórias foram registradas.
Imagem 2: 11ª. do conjunto de 12 tabuinhas que compõem a Epopeia de Gilgamesh, e que foi revelada por George Smith em 1872

Fonte: Blog: Ensinar História – Joelza Ester Domingues
Como mencionado antes, nas tábuas mesopotâmicas, mais precisamente na Tábua XI da Epopeia de Gilgamesh, narra-se o encontro do herói Gilgamesh com Utnapishtim, o sobrevivente do grande dilúvio. Utnapishtim conta a Gilgamesh a história do dilúvio. Segundo o supersábio, no início, os deuses realizavam os trabalhos pesados. Cansados de trabalhar, os deuses menores pedem aos Anunaquis, os deuses maiores, para criar um ser que pudesse trabalhar para que eles pudessem descansar e festejar.
Dessa forma, foi criada a humanidade. No começo, os humanos serviram ao seu propósito, mas com o passar do tempo, a humanidade se tornou barulhenta, orgulhosa, luxuriosa e principalmente numerosos, o que atrapalhava o descanso das divindades. Irritados, os deuses fizeram uma grande assembleia para discutir o que seria feito e foi decidido que a humanidade seria destruída por uma grande inundação.
Apesar dessa decisão, havia um deus que gostava da humanidade e que não desejava sua destruição: Ea, conhecido como Enki na mitologia suméria. Para evitar que Ea avisasse os humanos, foi proibido que qualquer deus falasse com um humano, garantindo assim a destruição total da humanidade. Mesmo com a proibição, Ea encontrou uma forma: ele secretamente foi à casa do homem mais sábio da humanidade e disse: “Utnapishtim, não vim aqui falar com você, vim conversar com esta parede. Parede, os deuses resolveram destruir a humanidade. Para você se salvar, quero que construa um grande barco, seguindo as orientações que irei fornecer sobre dimensões e os detalhes da construção para garantir a sua segurança e a de sua família.” E, dessa forma engenhosa, Ea conseguiu avisar Utnapishtim.
Imagem 3: Utnapishtim, o super sábio e seu grande barco

Fonte: Arte mesopotâmica
Assim como no mito bíblico, o supersábio foi instruído a colocar no barco sua família e todos os tipos de animais. E, por sete dias e sete noites, inundações devastadoras atingiram a terra, aniquilando toda a vida do lado de fora do barco. Após a devastação, o barco de Utnapishtim encalha em uma montanha, onde ele envia uma pomba, uma andorinha e um corvo para verificar se as águas haviam baixado o suficiente. O corvo não retorna, indicando que havia encontrado terra seca.
Nas duas narrativas, ficam evidenciados paralelos, quase como se fosse a mesma história, retirando alguns detalhes. O interessante em observar essa questão é o fato de que muitos acreditam que o mito bíblico veio antes, o que as pesquisas acabam por mostrar o contrário. Acredita-se que a tradição do dilúvio bíblico tenha sido influenciada por essas narrativas mesopotâmicas mais antigas, o que evidencia o compartilhamento de uma origem cultural comum na região do Crescente Fértil.
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[1] ENSINAR HISTÓRIA – Joelza Ester Domingues. Decifrado o dilúvio da Epopeia de Gilgamesh, 03 dez. 1872. Disponível em: https://ensinarhistoria.com.br/linha-do-tempo/decifrado-o-diluvio-da-epopeia-de-gilgamesh/ . Acesso: 28 maio 2025.

Lucas Santos Nobre, discente do Curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Acre – Ufac. Bolsista do Programa de Iniciação Cientifica – Pibic/CNPq, com o projeto intitulado “Entrecruzos socioculturais: os enunciados dos “corpos” e o mosaico étnico nas/das Interamazônica” com vigência de 2024 a 2025.




